Texto enviado pelo colaborador Valdir Bonete:
Houve um tempo em que homens eram arrancados de suas casas, sem aviso prévio, para defenderem suas "pátrias" das asneiras e aventuras de seus governantes. Partiam, sem certeza de voltar, deixando suas famílias sujeitas a males tão terríveis e traumatizantes como os da guerra.
Mas mesmo em tempo de paz não havia esperança nesse mundo. Quanto mais se produzia, mais era tomado: bens materiais, dignidade, a própria vida! A nobreza era divina: senhora de tudo o que houvesse em suas terras! O resto era descartável, fosse escravo ou plebe. Homens e mulheres nãopassavam de peças descartáveis no jogo do poder.
Depois, a revolução industrial transformou seres humanos em ferramentas de fábricas, com jornadas de trabalho estafantes e intermináveis.O século XX trouxe a sensação de que isto poderia mudar. O direito ao voto deu a impressão de que era possível ao povo influir em seus destinos. O Estado-Previdência fez crer que o povo deixara de ser mera matéria-prima da máquina de moer gente, de empresários gananciosos e governantes insensíveis.
Os ares da liberdade permitiam sonhar e era possível viver com dignidade e trabalhar com esperança de progresso.As famílias tinham pais, mães e filhos que se viam; parentes e amigos que se visitavam nos fins de semana; a conversa era fiada e jogada fora sem maiores conseqüências; a vida era difícil, mas não era impossível.
Aí veio o neoliberalismo, e a máquina de moer gente voltou com força total! O "mercado" passou a ditar regras que voltaram a tirar homens e mulheres de suas casas para lutar em suas "guerras", não contra a vontade, mas acreditando que essa era a sua opção de vida. As conversas viraram oportunidades de negócios; o sono, um inconveniente improdutivo; a doença, um risco muito mais profissional do que de saúde. Transformaram os objetivos e interesses de poucos, muito poucos, num "sonho" universal, que nos invade, transtorna e quase sempre vira pesadelo.
Trabalho que nunca termina; celulares permanentemente ligados; comida sem paladar; prazer sem satisfação; ansiedade constante; paixões que se consomem quando se consumam; amores e amizades descartáveis ou com segundas intenções; famílias que não se vêem, mesmo quando estão juntas.
Parece que agora, além de máquinas que pensem e ajam como humanos, também querem humanos que funcionem como máquinas: sempre ligadas e processando; máquinas que devem funcionar em qualquer circunstância; máquinas cuja pessoalidade é vista como falha; máquinas que sentem "culpa" ou "síndrome de abstinência" quando param; máquinas que persistem mesmo quando seu limite é superado e o risco de pane é iminente.
E quase sempre aceitamos essa "exigência de mercado" em nome das pessoas que amamos, sem notar que, com o tempo, ela nos cobrará que as coloquemos em segundo ou terceiro plano; que as esqueçamos... Por tudo isso, que a triste história do pai, cansado e doente, que esqueceu o filho no carro, nos sirva de alerta para que nos redescubramos como seres humanos e nos conscientizemos de que não somos máquinas a serviço exclusivo e submisso das insensíveis e insaciáveis expectativas do "mercado".
* Adilson Luiz Gonçalves é escritor, engenheiro e professor universitário
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