Pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, realizada a partir de dados do IBGE, mostra o retrato dos usuários de cocaína, maconha e lança-perfume: homens, jovens e ricos. É o mesmo perfil dos que mais morrem no trânsito
Renata Mariz
Da equipe do Correio (Brasiliense)
A discussão levantada pelo filme Tropa de elite sobre a colaboração das classes mais abastadas na manutenção da venda de drogas ganhou munição estatística. Pesquisa divulgada ontem pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) aponta que o consumidor de entorpecentes no Brasil é homem, jovem e da classe A. O estudo, feito com base nos dados de 2003 sobre orçamento familiar do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), considera a situação dos que declararam utilizar maconha, cocaína ou lança-perfume. Foram ouvidas no levantamento feito pelo IBGE 180 mil pessoas, das quais 0,06% disseram consumir drogas.
“Sabemos que há pessoas que usam mas não declaram, por razões óbvias, ainda que haja o sigilo nas entrevistas do IBGE. Mas conseguimos chegar a um dado preciso, do ponto de vista das informações, colhidas de um número significativo de pessoas que admitiram usar drogas”, diz o pesquisador da FGV Marcelo Neri, autor do estudo apresentado ontem e intitulado O Estado da Juventude: Drogas, Prisões e Acidentes.
Especialistas na área de violência e segurança pública concordam com os dados. “Há estudos que apontam, mas de um ponto de vista empírico, que os consumidores das classes altas são importantes nesse esquema do tráfico. Agora esse estudo, ainda que subsidiado apenas pelas respostas voluntárias, comprova isso com rigor estatístico”, afirma Robson Sávio, do Centro de Estudos da Criminalidade e Violência da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Para ele, o levantamento não só representa um retrato do consumo de drogas no país como contribui para a elaboração das políticas públicas.
Diante da incidência de jovens — especialmente na faixa dos 20 aos 29 anos — no consumo de drogas no país, ressalta Robson, o poder público deveria incrementar as campanhas educativas. “Não adianta realizar palestras pontuais, é preciso uma política de prevenção mais forte, que tenha engajamento sério da escola”, destaca o especialista. Para se ter uma idéia do problema, que começa cada vez mais precocemente, o índice de usuários declarados que têm entre 10 e 19 anos é de 36%, enquanto essa mesma faixa etária representa 17% da população total do país.
Os números mostram-se mais reveladores, no entanto, quando apontam a posição socioeconômica dos consumidores de drogas. São brancos (85%), de classe A (62%), com oito a 11 anos de estudo (60%) e que ocupam a posição de filho dentro de casa (80%), no lugar de chefes da família ou cônjuge. “Essa variável do papel de filhos, junto com todas as outras, reforça a visão do filme Tropa de elite. Acho, inclusive, que é o mérito da fita mostrar a realidade da droga no varejo e quem a consome”, afirma o pesquisador Marcelo Neri.
Para George Felipe Dantas, coordenador do núcleo de Segurança Pública do Uni-DF, o filme criou um momento político importante para que o tema seja debatido. “Essas estatísticas estão corretas, especialmente quando falamos de maconha e pó. Ao lado das mais recentes drogas sintéticas, são eles os típicos entorpecentes utilizados pela classe média”, diz Dantas, que também é consultor da Secretaria de Segurança Pública, vinculada ao Ministério da Justiça.
Debate diferente
Sávio, da UFMG, comemora o novo debate sobre o tráfico de drogas, saindo do cenário do morro e do traficante como personagem principal, e chegando ao consumidor. “A parte da distribuição e do consumo sempre foi muito pouco discutida. Agora é que esse tema veio à tona”, diz o especialista em segurança pública e violência. Ele teme, porém, que o debate seja distorcido. “Criminalizar, a partir de agora, o usuário, também não resolverá o problema”, diz. “O que precisa ser feito é ampliar e fortalecer as políticas de tratamento, encarando a droga como questão de saúde pública.”
Outro dado revelador, do ponto de vista econômico dos usuários, é o acesso a sistemas de crédito no mercado financeiro. Quarenta e quatro por cento têm cartão de crédito, contra 17% da população em geral. Entre os que possuem cheque especial, o índice é de 35%, sendo que apenas 12% dos brasileiros contam com esse tipo de vantagem. Embora teoricamente mais confortáveis financeiramente, os consumidores de drogas costumam atrasar prestações de aluguel, água, luz e compras divididas. São 11%, contra 7% da população ao todo.
“(O estudo) mostra hábitos interessantes levantados ao longo da pesquisa. Cabe analisar se o costume de atrasar pagamentos tem a ver com a quantia gasta na compra de drogas”, analisa Neri. Segundo ele, o estudo pode ser um bom ponto de partida para analisar o perfil dos consumidores. “Ninguém tem condição de afirmar se os dados refletem toda a população que consome, mesmo aquela que não declara. Talvez só os traficantes tenham essa radiografia”, afirma o pesquisador. “Mas podemos intuir também que o sentimento de impunidade, e a voluntária decisão de se autodeclarar consumidor, seja maior entre os ricos.”
Presidiários
É também o jovem que protagoniza o problema carcerário e a mortalidade no trânsito do país. Um esquema estatístico elaborado pela FGV, de acordo com dados da população penitenciária brasileira, apontou os fatores de risco que podem levar uma pessoa a se tornar presidiária. O perfil mais crítico é o do homem, solteiro, com idade entre 18 e 35 anos, migrante, com seis ou menos anos de estudo e de cor parda ou negra. A variável de risco mais preponderante, porém, é o sexo. Homens têm cinco vezes mais chances de serem presos que mulheres.
No caso do trânsito, é também o homem, e jovem, a maior vítima. Dados de 2005 do Ministério da Saúde mostram que, numa população de 100 mil habitantes, morrem 45,39 homens e oito mulheres. Todos na faixa etária dos 15 aos 19 anos. Dos 20 aos 29, essa proporção passa de 18,32 homens para 2,88 mulheres. A pesquisa ressalta, entretanto, que o número de desastres fatais caiu quase 6% de 1992 a 2004.
Para George Felipe Dantas, coordenador do núcleo de Segurança Pública do Uni-DF, o jovem no olho do furacão é uma questão sociológica. “Na sociedade medieval e também na moderna, o homem está mais exposto à dinâmica social, que envolve criminalidade, drogas, trânsito”, afirma o especialista. “Como explicar o jovem como grupo de risco em quase todos os problemas, inclusive doenças como Aids? Faz parte do perfil do jovem passar por riscos.”
Diferentemente das mortes no trânsito e do consumo de drogas, em que o jovem rico é o protagonista, na questão penitenciária é o pobre a maior vítima. “Não é que os hormônios tenham classe social, só o tipo de manifestação é que muda”, diz Neri. Para Dantas, nada mais típico em países de primeiro mundo que a relação entre condição social e apenamento. Ele destaca, entretanto, que as deficiências no sistema jurídico também colaboram com a situação. “O pobre não tem acesso aos instrumentos de defesa, precisa contar com defensores públicos, quando existem.”
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