Decisão exemplar

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Texto enviado pelo companheiro Luís Riogi Miura, ex-diretor de Trânsito de Maringá, com o seguinte comentário: "Se na área de trânsito, com a vida ceifada também tivesse o mesmo valor, com certeza as coisas hoje seriam diferentes".

A reprimenda penal contra a violência doméstica tardou no Brasil a ser admitida em legislação especial. Passou a integrar a ordem jurídica, nos termos da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), bem depois de iniciativas semelhantes adotadas em 17 nações latino-americanas. Mas as normas que estruturam a disciplina legal acolhida pelo Brasil figuram entre as mais modernas e eficazes do mundo. E, mediante interpretação construtiva e coerente, acabam de ser aplicadas pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal.

A decisão assume marco histórico. Mulher grávida espancada e atacada a fogo pelo marido queixou-se das agressões à polícia. Com base no inquérito policial, o Ministério Público denunciou o agressor à Justiça. Mas a parceira, sob impacto de graves ameaças do marido, acuada e aterrorizada, decidiu retirar a queixa na audiência criminal. O juiz, então, ordenou o arquivamento do caso. Inconformado, o Ministério Público recorreu ao Tribunal de Justiça.

Distribuído à 1ª Turma Criminal do Tribunal, o pedido de desarquivamento do processo feito pelo Ministério Público deu ensejo a decisão que se candidata como referência nacional no julgamento de casos da espécie. Os desembargadores integrantes do órgão especial dissiparam as dúvidas sobre se a retirada da queixa extinguia a punibilidade do acusado. Entenderam que, nas hipóteses de lesão corporal, a ação toma o feitio jurídico de incondicionada. Em outras palavras: o processo penal contra o infrator não depende da vontade da vítima.

Em conseqüência, os autos voltaram à primeira instância para que o réu seja julgado por lesões corporais, sujeito, se condenado, como tudo faz crer, a pena que pode alcançar até três anos de detenção. Malgrado lidasse pela primeira vez com a aplicação da Lei Maria da Penha, o tribunal conseguiu firmar linha de orientação consentânea com o espírito da inovação penal e do objetivo prático buscado pelo legislador. O que inspirou a lei específica de proteção contra a violência doméstica foi a intenção de tornar eficaz a punição do algoz e de colocar a salvo de eventuais retaliações a mulher agredida.

Não é por outra razão que a Lei Maria da Penha articula diversas medidas protetivas. O agressor pode ser afastado do lar, proibido de aproximar-se da mulher e dos familiares, ter suspensas as visitas aos filhos menores, pagar pensão provisória e expor-se a prisão preventiva. Garantem-se abrigo à ofendida e filhos sujeitos a riscos (sob guarda da autoridade pública), a retomada de bens e afastamento do trabalho até seis meses. São cautelas destinadas a banir da convivência com a mulher o homem que, a critério da Justiça, se revela capaz de praticar atrocidades contra a parceira.

Crucial, doravante, é que os juízes de primeira instância, do Distrito Federal e do Brasil, não arquivem processos contra brutamontes quando, ante graves pressões psicológicas e ameaças físicas, as vítimas se disponham a livrá-los da reação punitiva da lei. É exigência da consciência civilizada que a saga da biofarmacêutica Maria da Penha Maia, brutalizada pelo marido durante 20 anos e líder do movimento que resultou na lei batizada com o seu nome, seja executada à risca em defesa das mulheres tiranizadas e agredidas.

Correio Braziliense Visão do Correio 04.6.07

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